ENTRE O PRAZER E O SIGNIFICADO

segunda-feira, março 9

A Poética de um Clown 31

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A sociedade dos bons sentidos
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Eram duas orelhas. Só duas orelhas.
Estavam num grande cartaz que anunciava uma marca de aparelhos de rádio: PARA OS RÁDIOS THO-KATU-DO SOU TODO OUVIDOS.
O anúncio passou à história – será esta? – e as orelhas ficaram desempregadas. Que fazer?


Deu-lhes para voar sobre a cidade, como uma borboleta gigante, à procura de poiso.
Foram ter a um ferro-velho ao ar livre, onde, no meio de muita tralha, repousavam, sem préstimo, uns óculos gigantes, com o respectivo nariz. Tinham estado pendurados na fachada de uma loja de oculista, que mudara de ramo.
Associaram-se as orelhas aos óculos mais o nariz. Já não faltava tudo.
A borboleta que voava, agora, sobre os telhados da cidade estava mais completa. Ouvia, via e cheirava.


Operários andavam a desmontar do alto da porta de uma luvaria uma grande mão enluvada. O prédio ia ser deitado abaixo. A quem interessava uma luva sem luvaria?
Interessava à nova sociedade Orelhas, Óculos & Nariz, Ldª, em franco progresso.
Mesmo enluvada, a mão tinha tacto, pegava em coisas, dizia adeus. Era uma colaboradora imprescindível.


Se as orelhas ouviam, se os olhos atrás dos óculos viam, se o nariz cheirava e se a mão tacteava, o que é que faltava, para completar os cinco sentidos?


— Faltava a boca! — não disseram eles, porque não tinham boca para dizer.
Pois faltava a boca, que é a porta do paladar e, além disso, que fala, ri, assobia, beija. Ter boca dá imenso jeito.
Mas encontrar uma disponível?! Quem a tem, guarda-a para si. Não ia ser fácil.


A sociedade Orelhas, Óculos, Nariz & Mão, Ldª, resolveu pôr um anúncio no jornal:
BOCA
Precisa-se. De preferência, com dentes. Resposta a este jornal, ao nº tal e tal.


Responderam vários candidatos. Ofereceu-se uma dentadura, mas sem boca, o que não era conveniente.
Ofereceu-se a Boca do Inferno, um precipício sobre o mar de Cascais, o que estava fora de causa. Ofereceu-se um pudim chamado Boca Doce, também a despropósito.
Ofereceu-se uma boca de favas, que ninguém percebia. Por isto ou por aquilo, todas as bocas que apareceram foram rejeitadas. A boca do estômago, a boca de incêndio, a boca da noite e outras bocas e boquinhas não vinham para o caso.


— Parece que ficamos sem boca — não disseram eles, que não tinham boca, mas pensaram.


Até que lhes apareceu um coração, um lindo coração doirado de noiva minhota, que se apresentou nestes termos:
— Faço as vezes da boca que vos faz falta, porque tenho o coração ao pé da boca.
Onde? Não se via, mas eles acreditaram. Havia tanta franqueza naquele coração de oiro, que tudo o que ele dizia tinha de ser verdade.
E provou.


O MAIOR ESPECTÁCULO DO MUNDO, anunciava a cara cheia de um palhaço, de grandes orelhas e óculos estapafúrdios, sobre o nariz pintado, a apontar, com a mão enluvada, a entrada de um circo.
Não passava despercebida.


Aquela cara inocente de palhaço tinha a boca ao pé do coração. Ou vice-versa. E cinco ou mais sentidos de alegria, sempre generosos e prontos a apresentar o maior espectáculo do mundo que é a vida. Ou vice-versa.



António Torrado
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1 comentário:

Anónimo disse...

QUE DELÍCIA!!!

Já estava com saudades destas preciosidades!
Obrigada Vitor por partilhares!

Quem dá fica mais rico...

‘Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better.’

‘Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better.’